quarta-feira, 10 de novembro de 2010

FUGA PARA O NORDESTE

FUGA PARA O NORDESTE
(este conto foi escrito especialmente para o encarte do CD do grupo G.R.A.ve.)




Terra seca. Sol forte cegando o olho. Raimundo vai a pé. Iara Maria no jegue com os meninos. Os cachorro, com língua de fora, tão seguindo Raimundo. Todos indo pra casa do pai de Iara Maria.
“É o quê, menino Raimundo?” – pergunta o velho.
“É viagem pra São Paulo. Melhorar a vida. Depois volto e levo todo mundo. Se quisé, levo até o sinhô.”
“Carece, não. São Paulo é terra almadiçoada. Não vá, menino Raimundo.”
“Tenho de ir. Conhecer o arranha-céu”
“Vai sentir solidão no sertão do arranha-céu, homem. A cidade vai te esfolar vivo. Não vá, menino Raimundo.”
O sogro implorou. Pra ele, Raimundo, que não tinha nem pai nem mãe, era um filho. Mas o filho desobedeceu o pai como todos os filhos, legítimos ou não. Veio pra São Paulo beber desta água abundante e amarga. Depois, pensou, trazia todos. Trazia mesmo. Tava ali pra vencer.

Mas a cidade não perdoa. Castiga, merecendo ou não. Raimundo penou. Trabalhava de servente de pedreiro numa construção lá na liberdade. Saia de São Miguel cedo e ia pro parque D. Pedro. De lá subia no caminhar até a Liberdade, cruzando a praça da Sé. Ali encontrou um conterrâneo conhecido; o nego Benedito. Benedito havia se envolvido com uma galega de olho verde que gostava de um tal de blues – amigo letrado de Raimundo disse que era tristeza ou azul o diabo do blues. Pois Benedito viveu com a mulher, fez filho, fez o diabo e separou. Anos depois voltou lá e conversou com a mulher, tomando café e ouvindo o blues. Mas não voltaram, não. Ela tava já levando outro pra cama. Benedito na rua, com os filhos, pedindo esmola. Um deles, o pretinho Jorge, certa feita pulou do viaduto do Chá: no sonho de droga, pensou que podia voar. Tinha nove anos. Benedito lamentou, mas não muito. Pelo menos tava livre do sofrimento deste mundo, não é? E deve ter sido por isto que quis voar, também. Tempos depois, Raimundo não encontrou mais Benedito na Sé. Disseram que uns de rua tinham sido mortos por rapazes bonitos e bem vestidos, gente bacana que gosta de bater em gente humilde a noite. Deus vai castigar, Raimundo acredita, mas gostaria ele mesmo de fazer papel de Deus nestas horas.

A vida continuou. Cada dia mais difícil. Já não dava pra pagar conta. Tava devendo aluguel, luz, água, comida. Já não dava mais. Foi morar em invasão com o Cuia e outros conterrâneos da vila. Fizeram barraco perto do Jacu pêssego. Luz e água clandestina. Dava pra ficar ali um tempo. Muito pai de família ali, muita criança. Uma judiação. Ele não ia querer aquilo pra Iara Maria, não. Precisava trabalhar mais, tentar juntar dinheiro, fazer tudo direito. Raimundo é homem honesto, honrado e trabalhador.

Mas aí a prefeitura mandou expulsar todo mundo. Chegou oficial de justiça com os policia do lado no seu barraco. Chutou a porta e entrou. Disse que ia jogar tudo no depósito. Ia sair dali a força. Raimundo tentou argumentar mas o cacetete do policia não deixou. Caiu no chão sem ar e com dor. Oficial de justiça riu. Raimundo sentiu o sangue subir – podia sentir o sangue na boca, mas não sabia se era da violência alheia ou do próprio ódio. Foi aí que assucedeu tudo. Tão rápido que Raimundo nem lembra de detalhe nem nada. Só lembra que fez. Caído no chão, os policia saíram pra outro barraco. O oficial pegou a foto de Iara Maria.
“Quem é esta?”
“Minha mulher.”
“Nova assim? Não é sua filha não? Aonde é que ela tá?”
“Na Bahia.”
“Ela não tá aqui não? Tem certeza que ela não tá lavando a xereca? Ela tá com cara de xereca suja. Suja e fedida.”
Raimundo levantou meio cego. O oficial o empurrou sobre a pia.
“Vai fazer o quê, nordestino de merda? É melhor você voltar pra sua terra, viu!?”
E, de costa pro homem, Raimundo ouviu a foto ser rasgada. Na pia, a peixeira que havia cortado os limão da talagueta na noite anterior. Pois Raimundo pegou a peixeira de talagueta e correu ela no bucho do oficial. As tripas escorreram do umbigo até os pés do homem. Ele pensou gritar, mas Raimundo passou a peixeira no seu pescoço e o ar saiu pelo corte. O homem caiu morto. Rápido como raio, Raimundo pegou o pouco que tinha numa mala e saiu dali voado. Meia hora depois os policia voltaram no barraco e encontraram o homem morto. Não acharam Raimundo em lugar nenhum. Perguntaram a todos o que sabiam dele, mas ninguém nada sabia, não. Nem mesmo o sobrenome. O primeiro, disseram, era Raimundo, mas o pessoal chamava mesmo ele era de lobisomem.
“Lobisomem?”
“É, seu guarda. Tu não percebeu como ele era amarelo?”

Dias depois, Raimundo chegou na casa do velho sogro. Contou a ele e a mulher o que tinha acontecido. Só conseguiu fugir porque o amigo letrado do trabalho o levou até Minas e lá ele pegou ônibus clandestino até ali perto. Andou mais dois dias até chegar em casa. Tava numa caatinga só.
“Tu tá fedendo. Vá tomar banho.” – Disse o velho. Ele obedeceu. A mulher começa a chorar.
“É o quê, menina?” – pergunta o velho.
“A policia vai vim buscar Raimundo.”
“Sê besta, menina! Uma hora desta já prenderam algum coitado no lugar dele ou esqueceram tudo. Eles não vão sair de lá até aqui, não. Aqui não chega luz, não chega água, nem chega lei. Aqui é outro mundo, minha fia, se preocupa não – e esquece tudo que ouviu.”
Passou tempos. Um dia, o amigo letrado foi procurar Raimundo. Ele tava bem, feliz. O amigo contou que o caso tava arquivado.
“Morre muita gente todo o dia, e aquele cabra era safado. Nem a mulher dele achou ruim ele morrer. Se você quiser voltar pra São Paulo comigo...”
“Quero não, amigo. Aqui tá bom. Não tem quase nada mas tem meu amor. Aqui tá bom demais!”

Se tava bom?
Claro que tava.
E o que homem quer, mermo, não era o amor de Mulher?
Apois.

01 11 10
19h39