domingo, 20 de setembro de 2009

MEMÓRIAS DE ESPHERAS III




HORA DO CHÁ (ou 25 anos depois)


Para mim é bem claro o motivo d’eu ainda estar aqui bem sossegado: hoje eu não quero chegar no horário. Horário nenhum seria o ideal, mas tenho que cumprir minha função, da mesma maneira que um bom inglês toma o seu chá às cinco. Mas eu, como um brasileiro mediano, tomo meu chá às seis enquanto escrevo e ouço Frank Zappa.

E o por quê de tudo isto: evitar amigos e isolar-me sem telefone que me toque ou vivalma que saiba como me encontrar? Ora, às vezes – e por horas – eu quero estar sozinho comigo mesmo e pensar nas maiores besteiras que realizei nestes últimos vinte e cinco anos, idade que completei há algum tempo e que, se eu mesmo não lembrasse, a data passaria tão despercebida quanto uma data cristã na China Medieval.

Droga: não que isto importe! E vá lá saber se hoje não há cristãos até mesmo no Japão? Mas o que me fere mesmo é saber que ela esqueceu até que eu existo neste dia. E vinte e cinco anos é uma idade tão bonita: metade de cinquenta, que é metade de cem, que é o máximo que uma pessoa com a minha idade hoje pode chegar. Eu mesmo, se viver mais cinquenta anos de vida, já me considerarei um sortudo, merecedor da grande sorte – ou um puta azarado, daqueles que lembram da vida e ficam rindo da própria cara.

Mas vinte e cinco anos depois do meu nascimento, eu paro para ouvir Frank Zappa, enquanto me troco para sair da minha isolação e ir para o mundo real. Percebo que o chá esfria e até já me sinto melhor (não posso negar a mim mesmo que todos estiveram presentes na minha vida. De alguma forma, de forma alguma estive realmente sozinho neste período).

Então me vem à cabeça que as coisas podem ficar melhores agora, apesar dos fantasmas do passado e da minha triste mania de ser sincero, agressivo e idiota sempre que possível.

Frank Zappa e seu cd Hot Rats. Serão “ratos quentes” ou uma gíria britânica que eu não sei como traduzir? Lembro-me que já sonhei com quem me esqueceu alguma vez no passado ouvindo essa canção... Son of Mr. Green Genes... Um dejavú novinho em folha... O tempo corre e não há muito tempo para continuar escrevendo. Lembro-me que Frank Zappa já morreu há algum tempo, assim como eu.

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quinta-feira, 17 de setembro de 2009

MEMÓRIAS DE ESPHERAS II



ISADORA E O MUNDO

Isadora, quando era criança, tinha um bola pequenina. Mas, para ela, esta bola era o mundo. Não havia um dia em que Isadora não brincasse com sua bolinha.
Claro que Isadora, com o passar do tempo, começou a ter suas obrigações. Tinha que colocar água nas plantas no quintal, comida para os cachorros, lavar a louça, varrer a casa. Sempre tinha que arrumar o mundo para que seu mundo ficasse em paz.
Claro que Isadora, com o passar do tempo, começou a se relacionar com um mundo bem maior que sua casa. Ela começou a ter uma vida social. Começou a ir pra escola, onde conheceu outras pessoas, outros mundos. Isadora teve amigos, namorados, professores admiráveis, festas memoráveis... Mas sempre que passava por pessoas e acontecimentos, Isadora voltava pra casa, entrava em seu quarto e quicava sua bolinha; ela voltava ao seu mundo sempre que o mundo lá fora estava em ordem.
E Isadora conseguiu um bom emprego, mas o perdeu. Depois, conseguiu um mau emprego, e não podia perdê-lo. Teve que pegar o mau e transformar em bom. Não foi fácil, mas ela conseguiu, e não é que o mundo ficou melhor? E não é que quicar a bolinha ficou mais fácil? Quanto mais crescia, quanto mais aprendia, Isadora percebia que sua bolinha melhor quicava quando melhor vivia a vida.
E, por fim, é óbvio, Isadora acabou por casar. E entre os altos e baixos do casamento, Isadora teve filhos, e os filhos lhe deram netos, e os netos, bisnetos, e, com o passar dos anos, a vida tirou-lhe o marido e lhe deixou o vazio.
Isadora chorou, se isolou, sumiu do mundo por um tempo. Sua bola parou de quicar... mas, o mundo... O mundo não parou de girar, as flores continuavam crescendo, e o dia e a noite sempre iam e vinham... E uma bela manhã, o sol iluminou o quarto de Isadora, já fraca, coitada, tão idosa... mas feliz. Feliz porque pensava que encontraria o amado marido em breve de alguma forma.
Nesta mesma manhã, Lisandra, sua bisneta, entrou em seu quarto. Isadora já não tinha a mesma força de antes. Tinha conseguido colocar a casa em ordem, os estudos em dia, as festas, os namoros, os empregos, o marido, ela tinha deixado tudo em ordem para poder brincar com sua bolinha. Isadora tinha sido feliz, mas não podia mais quicar a bola que tanto gostava. Isadora estendeu a bola para Lisandra e sorriu. Lisandra pegou a bola e Isadora fechou os olhos – para sempre.
Hoje, Lisandra tem uma bola pequenina. Mas para Lisandra, esta bola é o mundo. E ela sabe que, para poder ter este pequenino pedaço de mundo em ordem nas suas mãos, terá que vivenciar uma vida inteira e finita. Um pequeno quicar capaz de transformar toda uma vida. Mãos tão pequeninas fazendo parte do universo. Acreditem; não haverá dia em que Lisandra não brincará com sua bolinha.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

MEMÓRIAS DE ESPHERAS





INGRID 17 VEZES

“When I think of all the things I’ve done
And I know that its only just begun
Those smiling faces you know I just can’t forget
But I love you”
(Lou Reed)



Indrid passou por minha vida 17 vezes, e em todas manteve-se virgem. Fosse porque eu já fosse casado e comprometido, seja porque ela simplesmente não quis perder – ou ganhar – comigo, ou fosse por qualquer outro motivo que agora me foge à compreensão, ela passou por mim intacta e limpa. O máximo que perto cheguei foi sentir seu amora e sabor virgem vaginal numa posição intra costal entre nádega e coxas brancas, pequenas e perfumadas. Foi o máximo: ela, deitada com as costas viradas pra mim e minha língua explorando suas intimidades jamais vistas ou tocadas sequer por homens, namorados ou amigos. Me senti um monge da religião mais sagrada do mundo explorando um templo sequer visto. A voz rouca de seus baixos gemidos de prazer, aprovação e reprovação marcaram minha vida em gestos, palavras e rimas que poetisa alguma conseguiria expressar. O ato passou, mas a vivência é tão eterna quanto estas palavras grafadas neste pedaço de papel.

Ingrid, a deusa virgem, era bem mais jovem que eu, e havia me conhecido em uma aula de behaviorismo na faculdade de psicologia. Eu era seu professor, e ensinei muito mais a ela do que Freud, Jung, Skinner e suas teorias conseguiram. Na cama uma vez, lhe ensinei os segredos do amor entre um homem e uma mulher. Ela aprendia como dar prazer e sentia o prazer invadindo seu corpo cheiro de flor, segurando-se tal qual vulcão que não quer entrar em erupção, mas já derrama as lavas a torto e a direito.
Além do prazer do toque, conversávamos. E como conversávamos. Ingrid nunca deixou de questionar e admitir a felicidade de Felícia, minha esposa. Será que ela existe mesmo? Se Felícia me fizesse tão feliz assim, como ela achava, será que eu estaria entre as pernas dela, falando coisas que nunca havia dito a minha companheira e vice e versa? Eu não sei. Uma vez achei que amar Felícia bastaria, mas desde que vi Ingrid, o amor por ela invadiu minha vida de forma avassaladora e inesquecível. Como é que eu ia conseguir viver sem os braços, os beijos e os perfumes de Ingrid?

(nota: sobre meu corpo, Ingrid – semi nua – toca meu sexo com o seu oculto, em saia rosa e calcinha branca, o mais puro, delicioso e macio do mundo, merecedor de minha mordida carinhosa e da minha respiração ofegante, cheirando a vocda com coca e cigarro de menta. Nenhuma bala de menta jamais conseguiria apagar o sabor de Ingrid do meu coração)

Certa vez, Ingrid veio ao meu escritório e, em meio a álcool e nicotina, começamos a questionar formas e amores de amor. Com tudo isto, seu noivo só tinha a ganhar, pois eu, em minha experiência com mulheres, lhe ensinei onde tocar, o que pedir, o que fazer e o que não fazer. Ingrid só não foi até um orgasmo porque não quis, frustando assim a minha alegria de alegrá-la, de ser o primeiro homem em sua vida de levá-la além do corpo, além desta casca que todos desejam, e a levar até o âmago de sua jovem alma, numa explosão eclipsada de prazer, tremores e líquidos, ao som das baladas de Bono Vox - ou Lou Reed, com seu The Velt Underground.

Mas ela se guardou para o noivo, que dizia amar. Aquilo que vários homens almejava seria dele. E eu nem sabia se ele era um homem capaz de ver quanta poesia possuía aquela alma feminina. Deus, como chorei naquela noite! Teria sido eu o homem mais feliz do mundo? A alma de Ingrid me deixava tão feliz! Talvez, se tivessemos mais tempo juntos, ou se Felícia ou o noivo sumissem de uma vez por todas. “Mas aí seríamos outras pessoas” – disse ela. Seus olhos iluminados apenas pela luz verde do meu computador, a alma alta e cheia de sonhos sobre o primeiro amor e estas bobagens todas. Foi a 17ª vez que estivemos juntos, quase no ato do amor. Mas passou. Às 20h, ela entrou em seu carro verde e partiu. Eu fiquei só, como é de costume. Voltei para a esposa que nada de novo tinha para me oferecer, além de parentes, bares noturnos e uma promessa que nunca se cumpriu de amor eterno.

Hoje, anos depois do fato ocorrido, procuro pela alma de Ingrid em todos os olhares que cruzo, mas não encontro. Ela, por fim, casou e perdeu sua virgindade. Hoje, sexo não é mais novidade. Muito menos amor. Mas sei que ela se arrepende profundamente – assim como eu também me arrependo – dos momentos em que estivemos juntos e não nos completamos até o final. Mas isto não importa. O amor de Ingrid está gravado em minha alma assim como o seu sabor está gravado em minha vida através da minha língua para todo sempre.

domingo, 6 de setembro de 2009

SOBRE NEYSON BELLOTO


Conheci Belloto em meados de 1993. Nesta época, eu tinha quase dezoito anos e já conhecia as drogas, o sexo, o rock, o blues, a mpb, o cinema, literatura, filosofia, psicologia e jornais sensacionalistas. Éramos todos jovens numa cidade como São Paulo, longe dos olhos dos pais e próximos da vigilância hipócrita de uma sociedade tetraplégica: éramos capazes de tudo. “Foda-se o sistema” era o nosso lema. E, quanto mais fodíamos o sistema, mais a gente se fodia. Foi difícil aprender o jogo da vida e, antes que isto acontecesse, muitos amigos entre quinze e trinta anos pereceram entre drogas, assassinatos, doenças mortais e suicídios. Belloto havia chegado de Espheras em 1989, e acabou parando em São Miguel. Nossas turmas não se cruzavam, mas tinham atitudes semelhantes perante a vida – e a morte. Aliás, nos conhecemos, de fato, no enterro de uma amiga em comum, que havia tirado a própria vida depois de assistir o casamento de sua grande paixão, em 1993.
Nos víamos com freqüência na Biblioteca Municipal Raimundo de Menezes, de lá, a conversa se mudava para as padarias de quinta categoria ou para um boteco qualquer. Pés rapados bebendo a pinga mais barata e fumando cigarros do Paraguai.
De súbito, Belloto recebeu a herança de uma tia rica. Foi a Espheras com dinheiro emprestado e voltou bem de vida. Montou o antiquário e começou a ter uma liberdade de tempo bem maior que todos nós, que nos tornamos ajudantes gerais em metalúrgicas ou office boys no centro de São Paulo. Alguns foram para a universidade e outros para a penitenciária – ou para a polícia. Nada mais seria possível num bairro localizado no extremo leste de São Paulo para os descendentes de nordestinos que tornaram a Nitro Operária a empresa que foi. As bandas não gravaram, os livros não foram publicados, os amores não deram certo e os sexos inconseqüentes – os que tiveram a sorte de não contrair HIV – se transformaram em casamentos mal sucedidos, salvo raras exceções.
Não havia esperança de uma vida extraordinária para pessoas ordinárias. Mas Belloto provou que toda a vida é ordinária; o que faz a vida extraordinária é a maneira que vivemos, e São Miguel se tornou nossa Grécia Antiga, nosso mundo mitológico.
Conversei muito com Belloto e gravei estas conversas, passando tudo para diários utilizando caneta e cadernos pequenos de capa dura, registrando nossos heróis. Sempre quis mostrar aos meus filhos estas histórias. Mas uma namorada certa vez leu um desses cadernos e apaixonou-se pela narrativa inusitada. Disse que aquilo devia ser dividido com o mundo – era muito egoísmo guardar para uma ou duas pessoas. Tentei convencer Belloto por um tempo, mas ele não permitiu a divulgação de suas histórias.
No ano passado, Belloto quase morreu ao receber um tiro no peito. Após o incidente ser superado, ele permitiu a publicação de seus relatos. Perguntei o motivo da liberação, e ele disse apenas que já estava morto. (De fato, após o incidente, ele nunca mais foi o mesmo. Quando alguém que você ama dispara um trinta e oito em seu coração, você morre, mesmo continuando vivo).
Uma vez permitido, entrego a vocês vidas em forma de contos. E, como disse Mário de Andrade, se nossa vida não servir de exemplo, ao menos servirá como lição. E, no final das contas, todos nós, daquela época até hoje, queríamos apenas o que Gianini deseja: existir. Todos os dias eu rezo a Deus para que isto esteja acontecendo.

São Paulo, 23 de Outubro de 2007.

TRILOGIA DESPEDAÇANDO FANY PARTE 1: RENDEZ VOUS REVISITADO


1995
É Sábado.
Belloto está com uma garota incrível em sua cama.
Nair está grávida e sem namorado.
Cida deseja saber – seja qual for o preço – porque Léo não quer tê-la.
Beatriz não consegue esquecer o ex namorado, um cara violento e possessivo.
Fany perdeu o emprego e não sabe o que fazer de sua vida.
Ênio, bufão e anfitrião da turma, convida todos para uma festa – segundo ele – inesquecível.
Eles não imaginam, mas este será um daqueles dias em uma vida que, simplesmente, não conseguimos esquecer...
_____________________________

TRECHO DO CONTO:

0.
Não era a primeira noite em que eu não dormia mas, pelo menos dessa vez, Fany estava ao meu lado – mesmo que dormindo. Comecei a alisar seus cabelos para ver se conseguia adormecer. Mas os longos cabelos castanhos não me convenceram que dormir seria uma boa idéia. Não queria acordá-la; por isso parei de tocá-la e sentei-me na cama. Conheço Fany há quase seis anos e nunca me passou pela cabeça que um dia isso iria acontecer.


Três dias atrás o telefone tocou, mas eu não quis atendê-lo. A secretária eletrônica fez isso por mim e escutei aquela voz feminina dizer: “Belloto, preciso falar com você. Por favor, me liga.”. Era Estefany.
No dia seguinte, eu estava à porta de sua casa e, apesar de querer me ver com tanta urgência, não falou nada de objetivo; apenas me convidou para dar uma volta. Andamos no centro antigo de São Paulo sem pressa ou destino. Foi nestas ruas que ela me contou que havia saído do escritório onde trabalhara por nove anos... seu primeiro emprego. Começou a chorar e eu lhe dei um forte abraço. Enfim, por algum motivo, estávamos na cama naquele justo momento quando o telefone tocou e espalhou os meus devaneios. Era Ênio e, pela sua voz, estava bêbado:
“Ô Belloto, seu porra! Dá um pulo aqui em casa hoje à noite; tem algo de especial para dizer para todo mundo!”
“Você poderia ter ligado num horário melhor, não acha, Ênio? Como é que você liga de madrugada pra casa dos outros?”
“Madrugada?” – ele riu – “Mas são nove e meia da manhã, seu porra!”
Tirei o telefone do ouvido e prestei atenção no relógio despertador. Ele havia parado às três e meia da manhã – e eu não percebi. Enquanto Ênio entoava seu riso sátiro, verifiquei no meu relógio de pulso a hora certa.
“O que há de tão importante esta noite, Ênio?”
“Primeiro: porque hoje é Sábado, como diria o poeta e, depois... Than dan! Venha à minha casa e saberá!”
Riu e desligou. Coloquei o telefone no gancho e me acomodei sob o cobertor. Fany me abraçou enquanto despertava aos poucos. Sorriu e beijou meu peito.
“O que houve, Bê? Que horas são?”
“Quase dez... Algo deve estar acontecendo, Fany.”
E assim o dia começou para todos nós.

TRILOGIA DESPEDAÇANDO FANY PARTE 2: FANY:UM TIRO EM SI MESMA



1997.
Amante de um homem casado e namorada de um poeta, Fany está perdida entre o amor e as drogas. Ao mesmo tempo, Jean precisa descobrir o que Kátia deseja de sua alma, enquanto Gianini e Belloto descobrem um novo universo para suas paixões. Ocorrido dois anos após “Rendez vous revisitado”, “Fany: um tiro em si mesma” relata os acontecimentos inusitados da vida de Belloto e seus amigos, sendo esta a segunda parte da trilogia “Despedaçando Fany”.

TRECHO DO CONTO:

01. VÉSPERA

É engraçado, mas parece que as coisas sempre começam a acontecer vinte e quatro horas antes. É como se não houvesse vida antes desse tempo em nossa existência. Mas aí as coisas acontecem, e do que é que lembramos? Do dia anterior. Da véspera.
Recordo-me bem de Fany despedindo-se na catraca do metrô República com um beijo no rosto e dizendo: “Obrigada, Belloto. Eu não vou esquecer.” Nos encontramos naquele fim de tarde. Ela queria conversar comigo.
“Tem que ser hoje?” – perguntei pelo telefone.
“Amanhã pode ser tarde demais.”

O tom depressivo e melancólico me convenceu atender ao chamado. Mas, ao vê-la sorridente e alegre, entendi que tudo aquilo podia não ser tão sério assim. Fomos a uma casa de chá e conversamos por algumas horas.
“Estou amando.” – ela disse – “E ele é lindo, Bê. Gostaria que você o conhecesse. Vou apresentá-lo, assim que possível.”
“E o que ele faz?”
“Ele? É poeta.”
“E?”
“Apenas poeta. Vive de poesia. Não é o máximo? Está certo que o pai dele banca muita coisa mas, mesmo assim, ele é corajoso por ousar uma vida assim. Eu queria tanto casar com ele!...” – e suspirou apaixonada, chupando pelo canudo seu mate com guaraná. Sorri por estar vivenciando uma tarde tão linda em São Paulo ao lado de um ex-amor. O sol poente tentava suavizar o cinza chumbo dos edifícios. Trabalhadores que corriam apressados para casa misturavam-se a casais sem pressa alguma e jovens coloridos de moda, despreocupados, doidos para perder tempo na cidade. Os óculos escuros de Fany estavam sobre a mesa plástica enquanto os meus escondiam meu olhar. – “E você, Belloto? Alguém especial em mente?”

Tudo se nublou. A solidão é mais óbvia em minha vida do que minha respiração. Balancei a cabeça com um sorriso cínico e triste no rosto. Ela olhou seus óculos na mesa e tirou os meus da minha face.
“Você tem olhos bonitos. Não devia esconder. Um dia aparece alguém, você vai ver.” – sorriu e pediu mais um copo de chá.

Andamos pela cidade até que a noite caiu. Acabamos indo a um teatro alternativo perdido em algum cruzamento da Ipiranga e, depois, caminhamos até o metrô.
“Não vai pra casa, Bê?”
“De ônibus. Preciso passar na casa de um amigo.”
“Ah.”
Comprou o bilhete, voltou e abraçou-me forte:
“Você é um cara legal, Belloto.”
“Mas, e então?”
Seus olhos brilharam; ela ia tentar me enganar.
“Então, o quê?” – Era incrível! Ela devia pensar que os poucos meses que passamos juntos não foram suficientes para eu conhecê-la em certos momentos. Deu um sorriso evasivo. – “Então, o quê, Belloto?”
“Não vai me contar o que queria dizer?”
Ela abaixou a cabeça. Nos subterrâneos, um metrô partiu sentido zona Leste.
“Eu sou meio doida... Meio tonta, talvez. Às vezes eu acordo, me olho no espelho e espero ser outra pessoa. Sabe o que é isso, Belloto? Às vezes quero ter outro corpo, outra voz...”
“Mas seu corpo e sua voz são maravilhosos!” –
Ela sorriu.
“Sim. Eu sei... No fundo, eu queria mesmo era trocar a alma.”
“Não pode. Mas pode melhorar a que tem.”
“Eu sei.” – Encostou na parede e acendeu um cigarro. Fany era uma linda mulher. Os cabelos, castanhos como os olhos, desciam até a cintura. Naquela época da vida, gostava de se vestir a moda idiana; longos vestidos hippies que sempre estavam cheirando a incenso barato. Os seios pequenos já não tinham mais a rigidez da adolescência, mas ainda eram belos. O cigarro era herança de um período desregrado, regado a drogas e estimulantes em festas dançantes, das quais ela saiu ilesa, vendo amigos sucumbirem a overdoses.
“Eu sei um monte de besteiras.” – Disse ela por fim, assim que o cigarro acabou – “Eu vou embora. Ambos temos compromisso esta noite. Obrigada, Belloto. Eu não vou esquecer.”
Sorriu, beijou-me na face e sumiu do meu olhar na escada rolante, que a fez evaporar em meio à pressa da multidão.

TRILOGIA DESPEDANÇANDO FANY PARTE 3: DEUS...CANSADO DE ANDAR



1999.
Em “Deus (...) cansado de andar”, Belloto nos relata as últimas desventuras da vida de Fany a partir de depoimentos de Gianini, Gino, Michelle e do livreiro Estênio, pai de Lázaro – o noivo de Fany, na época. Esta narrativa encerra a trilogia “Despedaçando Fany”, a primeira seqüência de contos baseado na vida do homem que vaga pelas almas inusitadas dos habitantes de uma São Paulo mitológica.

TRECHO DO CONTO:
1. LESTE
A morte era a única coisa que Lázaro enxergava à sua frente. Aos vinte e três anos, não acreditava mais no amor. Há meia hora havia apontado para a face do pai a própria arma do velho. Tocado pelo remorso, chorou, cheio de angustia e arrependimento. Mas a arma pesava em sua cintura, assim como a decisão em sua mente. Parou por um instante e encostou em uma parede de tijolos. Lembrou-se da estrada de tijolos amarelos do Mágico de Oz e riu. Lamentou-se por não estar em um filme, e as lágrimas voltaram. Na infância, ouvira tanto o pai e a mãe falarem de amor, aquele sentimento tão lindo, a benção mais nobre permitida por Deus, segundo o pai. E não só falavam, como praticavam no dia a dia, com atos e gestos de compreensão mútua, sorrisos e seriedade bem dosados com distâncias e aproximações dentro do tempo exato. Não se cansavam um do outro, muito pelo contrário; saiam se tocar, estarem juntos ou separarem-se no tempo certo. Entendia de amor e liberdade, e o velho pai dizia:
“Filho, amor sem liberdade não existe.”
E ele acreditou nas palavras do pai e na felicidade da mãe. Mas a mãe feliz não havia resistido à pressão alta. Parcialmente paralisada, Estevão decidiu contratar uma enfermeira para cuidar da esposa. O salário da profissional cheia de boas referências não assustou o livreiro que, seguindo os conselhos do poeta Vinícius de Moraes, aprendeu a ganhar dinheiro com poesia.
A mãe paralítica ainda sorria, um sorriso feio e desolado, e o pai lhe sorria de volta, um sorriso lindo e iluminado. Lázaro não conseguia entender a calma, a paciência e harmonia do pai perante a mãe naquele estado moribundo e nauseante.
“Pai, por que faz isso com mamãe?” – perguntou, certa vez.
“Faço o que, filho?”
“Por que a trata desse jeito?”
O pai sorriu:
“Mas eu a trato como sempre tratei!”
“As coisas mudaram, pai! Ela vai morrer.”
“Todo mundo morre, meu filho. Eu, você, ela. Se a morte tivesse que influenciar no que eu sinto por sua mãe ou na maneira de tratá-la, isto teria acontecido muito antes de você nascer. Mas antes que eu deixe de amá-la, ela irá morrer, da mesma maneira que eu posso morrer primeiro. A morte não justifica o amor,
Lázaro.”
“Meu pai sabe amar, mesmo!”, pensou Lázaro enquanto via o amor como o bem de maior valor deste mundo em que vivemos. E, de repente, achou que o amor existia nos olhos da enfermeira que cuidava de sua mãe. E, como todo o bom filho quer manter a tradição do pai, ele iniciou seu desejo de amar a enfermeira que, com tanto carinho, cuidava de sua mãe. Os olhos da menina de vinte e nove anos começaram a brilhar realmente. Ela sabia que Lázaro estava se apaixonando, e deu motivos para que ele se apegasse mais e mais. Seu nome era Stefany – ou melhor, Fany: como era conhecida.

O UNIVERSO DE UM ESPECTRO SOLITÁRIO: OS CONTOS DE BELLOTO SURGEM DOS ANOS 90!





Nascido em Espheras (SP) em 1972, Neyson Belloto chegou em São Paulo (Capital) em 1989. Seria um homem com uma vida comum, se não fossem amores e amizades que o cercam, transformando-o em um homem ordinário sempre envolvido em situações extraordinárias. Não tendo nenhum conhecimento específico, possui uma personalidade carismática, de forma que as pessoas costumam envolvê-lo em suas histórias pessoais. Teve amores intensos e esporádicos. Os mais importantes foram Stefany (in memorian), Luciana, Glena e Giovanna.
Belloto narrou suas experiências a Claudemir Santos e autorizou que fossem relatadas. “Despedaçando Fany” é o primeiro arco de contos que chega ao público. Hoje, Belloto mora na zona leste e possui um antiquário, com objetos tão incomuns quanto seu círculo de amizades.

Nascido em São Miguel (zona leste de São Paulo) em 1975, Claudemir Santos está envolvido com arte desde a adolescência, seja na música, na literatura e, principalmente, no teatro. Além de dirigir o grupo Alucinógeno Dramático Teatro & Pesquisa, é colaborador e parceiro de nomes como Sacha Arcanjo, Escobar Franelas, Flávia Bertinelli, Deus Ex Machina, Keila Fuke e banda G.R.A.V.E,. Conheceu Belloto em 1993, durante o velório da suicida Sabrina C. Lima. Belloto lhe narra histórias desde desta data, mas apenas agora autorizou o relato de alguns fatos.

(Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com a realidade e pessoas mortas ou vivas é mera coincidência. Todos os direitos reservados. O texto poderá ser utilizado, desde que citada a fonte. Mais informações com o autor em: claud-santos@hotmail.com)