quarta-feira, 31 de julho de 2013

BELLOTO E SUAS IMPRESSÕES SOBRE A PUBLICAÇÃO DE SUAS HISTÓRIAS


Manhã fria e chuvosa em São Paulo. Dizem que é o dia mais frio de 2013. Estaciono a moto na frente do antiquário e, apesar de ser um pouco mais de dez da manhã, o céu escuro e cinza faz parecer que a noite se aproxima. O farol ilumina a entrada e, ali surge Belloto com seus quarenta anos, fumando um filtro vermelho e me olhando. E desaparece. Desço da moto, entro e me desmonto. Ele está na sala de negócios do antiquário, já preparando um chá mate.

“Faz tempo que você não aparece.”, diz ele.
“Vida corrida. Não ta fácil pra ninguém.”
“Eu sei que não.”

E silêncio. O cara é bom nisso. Sabe que, se eu apareci, tenho algo a dizer e, quanto mais demoro, mais sério é o assunto. Mas ele não se antecipa. Aguarda paciente, tragando o cigarro enquanto aguarda a fusão erva-água.

“Consegui uma editora para publicar suas histórias.” – Ele se mantém impassível – “O Escobar Franelas me indicou...”
“O escritor?”
“Sim, o escritor. Ele me indicou a um amigo, que me levou à Kazuá.”
“Kazuá. Casa. Irmandade. Brotherhood. New Order… Bom, prossiga.”

Calei-me para refletir. As linhas de raciocínio do Belloto tem este efeito, às vezes.

“Você autoriza?”
“Já não autorizei?”
“Você autorizou uma pequena edição artesanal. Estou falando de uma Editora. Pode não dar em nada, mas também pode se tornar algo grande. Pessoas e mais pessoas vão ler suas histórias, saber de sua vida, e não serão meus amigos. Tem noção disso?”
“Dez, cem ou mil... Não fará diferença pra mim.”

Apagou o cigarro e levantou-se, levando o bule para a cozinha. Olhei para a xícara na mesa e adocei o chá. Alice Liddel não fez bem a este homem. Antes o tiro o tivesse matado por inteiro, e não só a alma.

“Por que?” – voltou ele, me perguntando com outro cigarro na mão.
“?”
“Por que publicar isto agora, depois de tanto tempo?”
“As pessoas não mudaram, Belloto. Muita gente se encontra nos seus desencontros. A sinceridade referente a sexo e drogas, as neuras juvenis, as relações amorosas que... enfim, estas coisas todas da juventude...”

“Todas essas coisas que não se vão com a idade... Maturidade não existe. Você sabe. Acredito que, mais que muitos, você sabe disso perfeitamente.”

Desconcertante. Considerei sair dali o mais rápido possível. Estava eu velho demais para aquela baboseira toda? Será que o Belloto virou só mais um babaca?

“Foi mal. Ando amargo estes dias. CONTOS DE BELLOTO, o livro, enfim. Sim, vai ser ótimo. Que bom que as pessoas gostam de ler sobre isto. Você vai ganhar muito dinheiro?”
“Não pensei nisto.”
“Nunca pensou. É verdade. O editor é decente?”
“Me parece que sim. Um gaúcho com bons ideais.”
“Gaucho. Rio Grande do Sul. Júpiter Maçã. Vander Wildner. Engenheiros do Hawaii. Terra de gigantes... Sim, pode da certo. Acredito que sim. A chuva parou. Disseram que amanhã o sol começa a voltar timidamente. Teremos dias quentes, mesmo no inverno, meu amigo.”

Tirou os olhos lá de fora, me olhou e sorrio. Fiz o mesmo. Ele acendeu outro cigarro de filtro escuro e a conversa girou em torno de outras coisas. Ao meio dia me convidou pra almoçar, mas eu estava sem fome. Aproveitei o estio e fui vagar de moto por São Miguel.

Há anos não encontrava Belloto. Sua alma estava pesada e, se bem o conheço, digo que andou mergulhando em alguma desventura. Digna de se transformar em livro. Mais pra frente, talvez. No momento, devo me concentrar na publicação de DESPEDAÇANDO FANY, pela Editora Kazuá. No mais, como meus leitores compreenderiam este Belloto hoje sem saber o que aconteceu em sua vida quando acendeu um pavio chamado Fany?

DESPEDAÇANDO FANY
Editora Kazuá
(Lançamento previsto para Setembro de 2013)

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

MEMÓRIAS DE ESPHERAS IV: HÁ UMA SEMANA ME SINTO ASSIM (UM CONTO CURTO DE BELLOTO)

Encontrei este depoimento numa fita Basf LM chrome plus II 60", que Belloto deixou comigo junta com outras mais. Foi gravada em 2002, conforme indica a data abaixo do conto. Não sei quem é a garota que Belloto se refere. Ele não cita seu nome em momento algum, e a pouca indicação histórica sobre fato diz respeito ao programa de Marcelo Tas na Brasil 2000 FM (quem quiser se informar sobre o programa: http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/ult514u95.shtml). Eu bem poderia fazer um levantamento histórico da vida deste homem, mas não o farei por dois motivos: 1) o desejo de manter anônimo o nome deste grande amor de 2002, quem eu até desconfio quem seja; 2) uma preguiça imensurável de vasculhar os arquivos pessoais de Neyson Belloto e revelar o nome em questão. Assim sendo, fiquemos com o conto, no momento. Boa leitura a todos.


 
Há uma semana me sinto assim, meio adoentado. É estranho, é uma fase de transição, a vida querendo dizer algo para mim. Eu tenho uma namorada. Ela não sabe, mas comparado aos  meus outros relacionamentos, acho que essa  é a primeira vez que eu posso dizer que namoro realmente. Ela me faz bem quase sempre, só que às vezes eu sinto uma certa dor. Não que ela me cause esta dor; esta dor é por minha culpa. É que ela me ama tanto, tanto, que às vezes eu tenho a impressão que ela me ama mais do que eu a ela. Em vinte minutos, ela estará sendo examinada por um ginecologista. Sua menstruação não vem há uma semana. Gravidez? Bom, será que um esperma meu seria inteligente o suficiente para enganar uma camisinha anatômica com espermicida? M. está casado há quase dois anos, usando camisinha e tabelinha, e nada... Bom, na família dela há dois casos de cisto ou algo parecido. Este é o medo dela. Os sinais da vida me dizem que não é gravidez, e o mundo gira, causando um suspense enorme em meu coração. Isto significa que é hora de ocupar minha mente com alguma coisa. Aliás, é o que estou fazendo desde manhã. Terapia ocupacional? Não; uma simples crença adotado de um ditado chinês – ou coisa parecida – que diz que antes de tomar uma decisão, devemos dar três voltas dentro de nosso lar. Eu, quando  perto de alguma mudança, arrumo meu quarto e troco algumas coisas de lugar. Mudanças. Esta madrugada sonhei que invadia a casa de um homem morto e vestia seu sapato. Sapato de morto?!  Ela ligou-me dizendo que ia passar no ginecologista. Deus!  Mas, eu estou para o que der e vier. Ela sabe disso.  Para esfriar a mente, eu começo a arrumar o quarto ouvindo Marcelo Tas na Brasil 2000 FM. Pego os discos amontoados e coloco-os em um lugar mais organizado. Imagens, recortes de revistas que ela me trouxe – além de coisas óbvias como discos, filmes, livros e cds, eu coleciono imagens. Começo a guardar estas imagens na minha caixa de imagens e eis que uma mais pesada cai do meio das outras. É ela. Uma foto dela, daquelas produzidas por pais orgulhosos da beleza dos filhos. O fundo é lilás, espiritualidade, assim como os brincos e as violetas –três- em um colar dourado e o batom. O vestido – A foto termina no busto – é vermelho, de um pano muito fino. Sua cabeça está inclinada levemente para a direita e ela olha-me – digo, olha para a frente -  esboça um sorriso e possui no olhar uma alegria tão grande de me ver, de me conhecer, de ter me ao seu lado como amigo, irmão, amante,...As pernas tremem, eu sento no chão e as lágrimas descem. Eu não as evito, estimulo-as, relembrando os momentos mais caros e raros  que passamos juntos.  Marcelo Tas fala coisas alegres e eu choro. Sinto a necessidade de amá-la cada vez mais e mais, de formas possíveis e impossíveis. Ela completou meu mundo e deu sentido a minha vida. Que Deus nos abençoe e cuide de nós, nos  ilumine  para mantermos sempre a lucidez e a  beleza do nosso romance. Nós acreditamos no Amor, e isto já é tão raro nos dias de hoje! Deus, eu sei que a amo bastante, mas eu quero amá-la cada vez mais e mais e mais e...

 
18/11/2002

domingo, 17 de fevereiro de 2013

A VIAGEM DE MÁRCIA

Um conto sobre prazer, realizações e fidelidade. Do trabalho TEORIA DA FIDELIDADE.



A VIAGEM DE MÁRCIA

            Deixar o marido com as duas pequenas filhas foi algo que doeu muito  em Márcia. Mas ela é uma mulher moderna e independente, e foi por isto  que o marido se apaixonou por ela. A personalidade forte, bem torneada e sem medo de desafiar o mundo. Márcia é uma mulher e tanto! Em seu carro do ano passado, ela cruza rodovias e rodovias, até chegar ao um hotel no interior do outro Estado ao lado de São Paulo para um conferência nacional de sua empresa. Após  estacionar o carro e mostrar suas credenciais, foi conduzida por um jovem até seus aposentos. Uma pequena suíte com tv, som, telefone e frigobar. Sentou-se na cama e, antes mesmo de tocar nas malas, telefonou para casa:

            - Oi, amor. Acabei de chegar. Dirigir por três horas e meia seguidas até que foi divertida. Estou meio cansada. Vou tomar um banho e me informar sobre os outros convidados. E as crianças? Que bom, amor. Sei, eu também queria estar com você, mas são só dois dias, e depois teremos todo o tempo do mundo para nos amar. Eu sei que você como é importante pra mim esta conferência. Representar minha empresa é um passo para a próxima promoção... Desde que tudo corra bem.(risos) Você está certo, paixão; o que poderia dar errado, não é mesmo?(seriedade) Te amo. Te amo muito.

            Conversam mais meia hora coisas que somente um casal que nada tem a dizer, a não ser "gostaria de estar com você" sabem conversar. Ela desliga e toma seu banho, demorando-se o suficiente para achar que o banho demorava. Vestiu-se e deitou na cama. Fechou os olhos por um instante, mas quando o abriu já era  seis da manhã. Estranhou o fato. Dormira oito horas seguidas, de tão cansada que estava. Por que não havia se dado conta antes de que estava tão cansada? Abriu e fechou as mãos repetidas vezes. Olhou as pernas bronzeadas em busca de algum sinal de varizes. Nada. Trinta e dois anos, duas filhas e nada de varizes. Refletiu por um momento, despiu-se e foi ao espelho. Ainda aparentava ser  uma pós adolescente. Todos diziam "Trinta e dois? Meu Deus, eu não lhe daria mais que vinte e cinco!". Sorriu. Duas filhas – parto natural! –  e toda a sexualidade do mundo em seu corpo moreno e conservado. Fazia o marido feliz... O Marido! Dois anos mais velho e vinte anos de envelhecimento corporal. Desgostou-se e foi vestir-se. Possivelmente a cerveja no bar com os amigos, ou a vida sedentária enquanto ela, além de trabalhar, enfrentava algumas horas de academia toda a semana. E para quê isto? Para evitar que o marido olhasse para outras mulheres que não ela. Mas ele olhava. Todos os homens olham... Todos são... Tão parecidos... Quase idênticos! Olhou o relógio. Sete horas. Hora do café. A conferência começaria às oito. Colocou um  Luís XV nos pés e saiu da suite.  

 

 

            "Os assuntos de sempre!", pensou Márcia. Sua empresa estava há muito à frente das outras. Os assuntos e problemas que eram pauta da conferência, na maioria das vezes, eram casos que sua empresa já havia resolvido. Ela mesma havia dado a solução para muitos casos. Certamente, as pessoas acabaram por perceber a presença daquela mulher-menina que falava com tanta propriedade sobre vários assuntos ligados àquela área. Não devia ter mais que um metro e sessenta e cinco, cabelos longos e olhos levemente esverdeados, em contraste com a pele bronzeada, quase morena, quase branca, quase... irresistivel ao olhar masculino. E sorriu; os homens a olhavam com seus olhos de raposa, e ela sorria de desdém. Nunca a teriam. Nunca a provariam. Ela estava acima de todas as mentes, de todos os corpos. Márcia era uma deusa, intocável.

            Na mesa de almoço, junto a outras pessoas da conferência, a conversa fluía. Muitos lamentavam o estado civil de Márcia, mas, ao olharem as fotos, diziam que esperariam para se casarem com uma de suas lindas filhas que, apesar de não terem mais que sete e nove anos, já mostravam o traço de beleza e inteligência da mãe. Ela sorria. Ninguém comentava o marido. Ninguém, nem as mulheres. Nem por pena ou por gentileza. Era como se não estivesse na foto que ela sempre trazia na bolsa. Temia que alguém perguntasse. "É sério!? Uma mulher como você com um homem como este?". "Eu o amo, e daí?", ela responderia. Eles fariam aquela cara e dariam com os ombros, ou pensariam "Deus salve o amor!" ou "O amor é cego mesmo!". E Márcia apenas recordaria seu amado ao dezoito, dezenove anos, com seu porte atlético e sorriso cristalino. Mas não são as mulheres que costumam engordar e criar barba e mau hálito com o tempo? A maioria das mulheres casas lembravam rolhas de poço, pizzas gigantes e elefantes verdes. Márcia tem verdadeiro horror a isto. Destruir o corpo seria como destruir a mente, e vice e versa. O corpo era reflexo de sua mente... Imaginou a mente do marido. Por um momento sentiu ânsia. Pediu licença e saiu da mesa, indo direto ao banheiro. No caminho, quase derrubou um dos funcionários do hotel. Ele  desculpou-se, sendo que a culpa era dela, mas ela mal ouviu. Correu ao banheiro e sentou-se  no vaso sanitário. Havia no ar um cheiro de eucalipto, o que fez com que ela relaxasse. Fechou os olhos por um momento e escutou alguém batendo na porta. Era uma das mulheres que estavam à mesa com ela.

-          Você está bem, Márcia?

-          Sim, estou. Só mais um minutinho.

-          Tem certeza?

-          Tenho.

-          Está certo. Eu vou te esperar lá fora.

Márcia ficou mais um pouco e saiu.  O refeitório estava deserto. Só a mulher a esperava. Ela se deu conta que havia demorado um pouco no banheiro. Não ousou olhar o relógio; preferiu os olhos da colega de profissão.

-          Quanto tempo?

-          Quarenta minutos.

Márcia começou a chorar. A nova amiga não sabia o que fazer. Olhou para todos os lados e abraçou a desconhecida, levando-a para a sacada do hotel.

-          Ei, o que está havendo?

-          Nada. Me desculpe.

Ela olhou para Márcia como se pudesse ler sua mente e deu um triste sorriso antes de dizer a palavra mágica:

            - Homem. – Só restou a Márcia balançar a cabeça positivamente – Sempre eles! São todos iguais e nada valem! Amante?

            Márcia a olhou um tanto espantada e ofendida.

-          Marido.

-          Pior do que pensei! Traição?

Márcia parou de chorar. Traição? Seria? De certa forma, sim. Mas o que ele havia traído? Enxugou os olhos, agradeceu a estranha pela atenção prestada e foi para o elevador, sem mais nada dizer.

Em seu quarto, deitada na cama, começou a pensar em divórcio. Mas, e a filhas? Não, não podia se divorciar – já havia sido criada pela mãe, sem a presença paterna, e não queria isto para as filhas. Neste momento, bateram na porta. Pelo olho mágico,  viu que se tratava de um jovem, empregado do hotel. Abriu a porta?

-          Pois não?

-          A senhorita Dolores me disse que precisava de mim.

-          Não preciso.

-          Não mesmo? – E a olhou deliciosamente.

          -  Não. Obrigada. – E fechou a porta. Dolores? Abriu novamente e fez um "psiu", pois o jovem já havia dado alguns passos. Ele sorriu e voltou faceiro. – Quem é Dolores?

-          Sua amiga, que almoçou a pouco com a senhorita.

-   Ela não é minha amiga. – curiosidade; sempre ela! – E no que ela supõe que eu precise de você?

- Consolo.

Márcia fechou a porta do quarto violentamente, fazendo o som ecoar por todo o andar. O que Dolores estava pensando? Que era uma vagabunda? Uma infiel com o seu amado marido?

Deitou-se na cama e decidiu esperar a hora passar. Logo mais, à noite, todos os participantes da conferência se encontrariam no salão de jogos para a integração do grupo. Ela diria poucas e boas para Dolores e, com certeza, estragaria qualquer oportunidade de negócios que ela tivesse na Capital. Conhecia e era temida por todos na Capital... Aquilo não ia ficar barato! E batem na porta novamente. Márcia abre a porta violentamente; Dolores está à sua frente séria, com olhar penetrante. Desviando-se daquele olhar, Márcia a pegou pelos cabelos e lançou-a na cama, furiosa e brutal como havia sido certa vez no colégio.

-          Qual é o problema, Márcia? Você é louca?

- Eu, louca? E por acaso, você  é? Enviando um garoto de programa ao meu quarto, pensando que sou uma mulher decaída e carente?

-          Eu pensei que uma transada iria te fazer bem.

-          Talvez você seja assim, mas eu não sou! Já tenho um homem em casa!

 

 

 

-   Eu também tenho um homem em casa, mas o que você quer que eu faça se aquele gordo nojento não é capaz de me dar prazer? Só sabe subir em cima de mim, bufar e ejacular como um porco? Você tem a minha idade, Márcia, o meu corpo,... A gente se cuida tanto com medo que o amor deles por nós  acabe, e o que recebemos em troca? Um homem descuidado e sedentário. Não foi isso que eu quis para meu casamento... Transar com rapazes alivia meu fardo de prazer, a compaixão e a dó substituem o amor e eu sou capaz de suportar meu casamento, enquanto meus filhos crescem.

Márcia olhava Dolores e entendia bem o que ela dizia, mas não deixava de achar tudo aquilo imoral e sem sentido. Ir para cama com outro homem que não o seu... Lembrou-se do jovem e de seu sorriso maroto. Ele não havia feito suas filhas, não a levou para o hospital sob a chuva e nem assistiu ao nascimento delas. Não, aquele moleque de nada sabia; apenas tinha um corpo bonito e um pênis... e um pênis...

- Eu não vou trair meu marido, Dolores. Não com um  garoto que nem ao menos sabe o que é Ter experiência de vida.

- E quem falou em traição? É só prazer; é como comer um doce, tomar um drink... Não é nada sério, nem compromisso, nem paixão. É um estimulo e um momento. Nada mais. Você nunca se masturbou por outros homens que não fosse seu marido? Nunca fechou os olhos e imaginou que era outra em cima de você, e não ele? Será que quase não disse outro nome sem querer? Ou você  é daquelas que fazem tudo muda, com medo de que seus desejos escapem pela boca? Eu amo meu marido, Márcia. Amo o pai de meus filhos. Mas ele não me dá mais prazer. E eu preciso sentir prazer!

Não havia o que dizer. Márcia abriu a porta.

- Obrigada pela boa intenção, Dolores, mas não se preocupe. Quando eu quiser fazer sexo com alguém, eu mesmo chamo.

Dolores levantou-se e ajeitou os cabelos.

- E você acha que seu marido nunca fez nada disso que eu falei? Não seja idiota, Márcia. A fidelidade  sexual é uma fantasia religiosa. É como esperar a volta de quem já morreu.

            - Até mais, Dolores.

Dolores saiu do quarto e Márcia fechou a porta. Há louco para tudo! Pegou o telefone com impulso, para contar o acontecimento para o marido. Afinal, sempre contavam tudo um para o outro... Não. Ela sempre contava as coisas para ele. Colocou o telefone de volta à sua base e passou a mão pelos cabelos. Talvez devesse conversar sério com o marido sobre atividades físicas. Ele ainda era jovem, podia voltar a Ter um corpo bonito como o do rapaz...O do rapaz. Márcia tomou outro banho demorado, e teve cuidado para não sujar a mão com o sabonete, a fim de que não irritasse sua pele mais sensível do corpo.

 

 

            Depois daquele episódio, Márcia evitou aproximar-se de Dolores, e por sorte não via o jovem transitando pelo hotel. Seria constrangedor revê-lo. As palestras e trocas de experiências seguiram-se durante mais um dia, e, como sempre, Márcia destacava-se dos demais. Era, de fato, uma mulher fascinante. O marido a merecia? Merecendo ou não, havia as filhas, e ela sabia muito bem o que era crescer sem um pai do lado. E seu marido era um ótimo pai, um amigo extraordinário e carinhoso. Só? Controlou-se para não chorar. Era a última palestra da tarde. Então, poderia voltar para seu quarto, arrumar suas malas e partir.

            Palmas! Todos de pé, cumprimentando-se e despedindo-se ali mesmo, no salão de convenções. Muito partiriam ainda à tarde. Márcia decidiu ficar e dormir. Partiria de manhã, descansada e alimentada. Despediu-se de todos e foi para seu quarto, ligar para o marido.

            - Oi, amor. A última palestra acabou de acontecer. Amanhã cedinho estou voltando para casa. Prepara um almoço gostoso, que eu vou chegar por volta da uma. As crianças estão bem? Deixa eu falar com elas. Oi pequena, tudo bem? Papai cuidou bem de você? Ele comprou chocalate? Que bom, amorzinho! Amanhã mamãe já tá aí, tá bom? – E batem na porta – Espera um pouquinho, que eu tenho que atender a porta.

            Márcia abre a porta. Era Dolores.

-          Vim me despedir.

-          Estou ao telefone, com a minha família. – Ríspida e seca foi Márcia.

- Não se preocupe. Sua chance foi desperdiçada. Ele está de folga e só voltará depois que todos tivermos ido embora. Você é  uma tola. Se eu fosse você, o levaria para cama, e o trataria como se fosse sua primeira vez... Até mesmo a minha primeira vez. 

Dolores sorriu e mandou um beijinho para Márcia, mesmo estando perto o suficiente para beijá-la. Márcia fechou a porta e voltou para o telefone.

 

Não dormiu à noite, pensando em casa. As filhas estavam bem e com saudades, assim como o marido, que estava ansioso por  sua volta. Márcia pensou nele e chorou durante toda a noite. Sabia que não o amava mais. Não como homem. Era tudo uma farsa, e em nome da criação de suas filhas, esta farsa prosseguiria até quando não fosse mais necessária. Talvez o "não fosse mais necessária" acontecesse quando ela jás avançada nos anos. O corpo, por mais conservado que ficasse, deixaria de ser atraente, mais cedo ou mais tarde. Tão jovem, tão bela quanto Dolores... Amada por um homem tão desarmonioso.

 

O Sol nasceu. Alguém bateu na porta.

-          Serviço de quarto.

-          Entre.

E o garoto entrou. Não devia ainda ter dezoito anos e, pelo susto que levou ao ver a pequena e muída morena em trajes de sono, nunca antes tocara em uma mulher. Desviou o olhar e fez menção de sair. Mas a dama pediu para que ficasse, entrasse e trancasse a porta. Perguntou seu nome. Era João. Pediu para que se aproximasse da cama. Perguntou a idade. Dezessete. Nunca havia antes saído do interior. Rezava aos domingos na pequena capela do local. Márcia sorriu, e disse que sentasse na cama, pois não iria mordê-lo. Ele sentou-se. E ela mentiu.

 

 

            Quando chegou em casa, duas horas depois do horário previsto, disse ao marido que havia dormido demais. As  filhas abraçaram e beijaram o rosto jovem da mãe. Era ótimo está em casa. O marido abriu uma cerveja em lata e tomou-a de um gole só, com prazer e volúpia. Márcia lembrou-se de João chegando ao orgasmo pela primeira vez na vida e sorriu. Amava as filhas, amava o marido. Amava e necessitava de prazer.

 

(9.10/05/03 – 1:49hrs)

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

AS MENINAS DE MOGI FALAM SOBRE BELLOTO

Em 2004, uma namorada que estudava no CEFAM levou os contos de Belloto para suas amigas lerem. Ao final da leitura, ela pediu que comentassem o trabalho. O resultado foram três críticas sobre o universo do espectro solitário. Seguem os textos digitados.


 
14/09/04
 
discorra sobre os contos que você leu, tais como:
“Do  amor ao crime”
“Bete dos olhos azuis”
“O observador”
“No dia que ela chegar”
De Claudemir Santos
 
Obs:
Deixe seus dados, opinião pessoal sobre o que sentiu em relação a cada conto, críticas, o que gostou ou uma mensagem ao autor. Obrigada!
 
Anteciosamente,                                                                              
Regiane A.
 
NOME: Michele L F
Idade: 18 anos
Residente em: M C
Estilo literário preferido: suspense
 
Não tem como ressaltar apenas um conto, pois todos são maravilhosos em estilos diferentes, e nos transpõem para dentro da história. Chega uma hora em que não somos mais leitores e sim personagens, com os seus mesmos medos, dúvidas e aflições. Mas confesso que o que mais me impressionou foi “Bete dos olhos azuis” por descrever os sentimentos das pessoas por uma vida inteira e não apenas o momento em que se desenvolve. E mais, as cenas e imagens que nos faz imaginar são fortes e marcantes e nos dá a impressão que realmente vimos, não apenas imaginamos.
 
 
NOME: Jaqueline V S
Idade: 18
Residente em: M C
Estilo literário preferido: não tem (leio todos)
 
Adorei! São contos, histórias de arrepiar tão o maior suspense, emocionam deixam a gente com a boca aberta e os olhos fixos para não perder nenhum pedaço.
Continue assim com a imaginação brilhante, para continuar prendendo a nossa atenção, fazendo a gente mergulhar nas histórias, e imaginando estas cenas incríveis e com tanta ação, cenas fortes. Você nos passa uma descrição dos personagens, seus sentimentos, suas reações, pensamentos, que são nítidas que passamos a entrar e sentir imaginar cada cena, palavra.
É incrível sua capacidade de escrever cada história com um enredo diferente e um final surpreendente. Parabéns!+-
 
NOME: Kalliny R F
Idade: 18 anos
Residente em:  M C
Estilo literário preferido: ?
 
As histórias são todas porcas, nojentas, depravadas, e eu não li ainda nenhuma que acabasse com final feliz, as formas como os personagens se expressam são fortes demais. E são essas características incomuns e o desenrolar das histórias e principalmente o final delas, que as tornam completamente irresistíveis de ler, maravilhosas e surpreendentes. E é uma pena que mais pessoas não possam participar delas, pois são fantásticas e apesar do gênero violento os enredos nada tem a ver um com o outro.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

FUGA PARA O NORDESTE

FUGA PARA O NORDESTE
(este conto foi escrito especialmente para o encarte do CD do grupo G.R.A.ve.)




Terra seca. Sol forte cegando o olho. Raimundo vai a pé. Iara Maria no jegue com os meninos. Os cachorro, com língua de fora, tão seguindo Raimundo. Todos indo pra casa do pai de Iara Maria.
“É o quê, menino Raimundo?” – pergunta o velho.
“É viagem pra São Paulo. Melhorar a vida. Depois volto e levo todo mundo. Se quisé, levo até o sinhô.”
“Carece, não. São Paulo é terra almadiçoada. Não vá, menino Raimundo.”
“Tenho de ir. Conhecer o arranha-céu”
“Vai sentir solidão no sertão do arranha-céu, homem. A cidade vai te esfolar vivo. Não vá, menino Raimundo.”
O sogro implorou. Pra ele, Raimundo, que não tinha nem pai nem mãe, era um filho. Mas o filho desobedeceu o pai como todos os filhos, legítimos ou não. Veio pra São Paulo beber desta água abundante e amarga. Depois, pensou, trazia todos. Trazia mesmo. Tava ali pra vencer.

Mas a cidade não perdoa. Castiga, merecendo ou não. Raimundo penou. Trabalhava de servente de pedreiro numa construção lá na liberdade. Saia de São Miguel cedo e ia pro parque D. Pedro. De lá subia no caminhar até a Liberdade, cruzando a praça da Sé. Ali encontrou um conterrâneo conhecido; o nego Benedito. Benedito havia se envolvido com uma galega de olho verde que gostava de um tal de blues – amigo letrado de Raimundo disse que era tristeza ou azul o diabo do blues. Pois Benedito viveu com a mulher, fez filho, fez o diabo e separou. Anos depois voltou lá e conversou com a mulher, tomando café e ouvindo o blues. Mas não voltaram, não. Ela tava já levando outro pra cama. Benedito na rua, com os filhos, pedindo esmola. Um deles, o pretinho Jorge, certa feita pulou do viaduto do Chá: no sonho de droga, pensou que podia voar. Tinha nove anos. Benedito lamentou, mas não muito. Pelo menos tava livre do sofrimento deste mundo, não é? E deve ter sido por isto que quis voar, também. Tempos depois, Raimundo não encontrou mais Benedito na Sé. Disseram que uns de rua tinham sido mortos por rapazes bonitos e bem vestidos, gente bacana que gosta de bater em gente humilde a noite. Deus vai castigar, Raimundo acredita, mas gostaria ele mesmo de fazer papel de Deus nestas horas.

A vida continuou. Cada dia mais difícil. Já não dava pra pagar conta. Tava devendo aluguel, luz, água, comida. Já não dava mais. Foi morar em invasão com o Cuia e outros conterrâneos da vila. Fizeram barraco perto do Jacu pêssego. Luz e água clandestina. Dava pra ficar ali um tempo. Muito pai de família ali, muita criança. Uma judiação. Ele não ia querer aquilo pra Iara Maria, não. Precisava trabalhar mais, tentar juntar dinheiro, fazer tudo direito. Raimundo é homem honesto, honrado e trabalhador.

Mas aí a prefeitura mandou expulsar todo mundo. Chegou oficial de justiça com os policia do lado no seu barraco. Chutou a porta e entrou. Disse que ia jogar tudo no depósito. Ia sair dali a força. Raimundo tentou argumentar mas o cacetete do policia não deixou. Caiu no chão sem ar e com dor. Oficial de justiça riu. Raimundo sentiu o sangue subir – podia sentir o sangue na boca, mas não sabia se era da violência alheia ou do próprio ódio. Foi aí que assucedeu tudo. Tão rápido que Raimundo nem lembra de detalhe nem nada. Só lembra que fez. Caído no chão, os policia saíram pra outro barraco. O oficial pegou a foto de Iara Maria.
“Quem é esta?”
“Minha mulher.”
“Nova assim? Não é sua filha não? Aonde é que ela tá?”
“Na Bahia.”
“Ela não tá aqui não? Tem certeza que ela não tá lavando a xereca? Ela tá com cara de xereca suja. Suja e fedida.”
Raimundo levantou meio cego. O oficial o empurrou sobre a pia.
“Vai fazer o quê, nordestino de merda? É melhor você voltar pra sua terra, viu!?”
E, de costa pro homem, Raimundo ouviu a foto ser rasgada. Na pia, a peixeira que havia cortado os limão da talagueta na noite anterior. Pois Raimundo pegou a peixeira de talagueta e correu ela no bucho do oficial. As tripas escorreram do umbigo até os pés do homem. Ele pensou gritar, mas Raimundo passou a peixeira no seu pescoço e o ar saiu pelo corte. O homem caiu morto. Rápido como raio, Raimundo pegou o pouco que tinha numa mala e saiu dali voado. Meia hora depois os policia voltaram no barraco e encontraram o homem morto. Não acharam Raimundo em lugar nenhum. Perguntaram a todos o que sabiam dele, mas ninguém nada sabia, não. Nem mesmo o sobrenome. O primeiro, disseram, era Raimundo, mas o pessoal chamava mesmo ele era de lobisomem.
“Lobisomem?”
“É, seu guarda. Tu não percebeu como ele era amarelo?”

Dias depois, Raimundo chegou na casa do velho sogro. Contou a ele e a mulher o que tinha acontecido. Só conseguiu fugir porque o amigo letrado do trabalho o levou até Minas e lá ele pegou ônibus clandestino até ali perto. Andou mais dois dias até chegar em casa. Tava numa caatinga só.
“Tu tá fedendo. Vá tomar banho.” – Disse o velho. Ele obedeceu. A mulher começa a chorar.
“É o quê, menina?” – pergunta o velho.
“A policia vai vim buscar Raimundo.”
“Sê besta, menina! Uma hora desta já prenderam algum coitado no lugar dele ou esqueceram tudo. Eles não vão sair de lá até aqui, não. Aqui não chega luz, não chega água, nem chega lei. Aqui é outro mundo, minha fia, se preocupa não – e esquece tudo que ouviu.”
Passou tempos. Um dia, o amigo letrado foi procurar Raimundo. Ele tava bem, feliz. O amigo contou que o caso tava arquivado.
“Morre muita gente todo o dia, e aquele cabra era safado. Nem a mulher dele achou ruim ele morrer. Se você quiser voltar pra São Paulo comigo...”
“Quero não, amigo. Aqui tá bom. Não tem quase nada mas tem meu amor. Aqui tá bom demais!”

Se tava bom?
Claro que tava.
E o que homem quer, mermo, não era o amor de Mulher?
Apois.

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19h39

domingo, 20 de setembro de 2009

MEMÓRIAS DE ESPHERAS III




HORA DO CHÁ (ou 25 anos depois)


Para mim é bem claro o motivo d’eu ainda estar aqui bem sossegado: hoje eu não quero chegar no horário. Horário nenhum seria o ideal, mas tenho que cumprir minha função, da mesma maneira que um bom inglês toma o seu chá às cinco. Mas eu, como um brasileiro mediano, tomo meu chá às seis enquanto escrevo e ouço Frank Zappa.

E o por quê de tudo isto: evitar amigos e isolar-me sem telefone que me toque ou vivalma que saiba como me encontrar? Ora, às vezes – e por horas – eu quero estar sozinho comigo mesmo e pensar nas maiores besteiras que realizei nestes últimos vinte e cinco anos, idade que completei há algum tempo e que, se eu mesmo não lembrasse, a data passaria tão despercebida quanto uma data cristã na China Medieval.

Droga: não que isto importe! E vá lá saber se hoje não há cristãos até mesmo no Japão? Mas o que me fere mesmo é saber que ela esqueceu até que eu existo neste dia. E vinte e cinco anos é uma idade tão bonita: metade de cinquenta, que é metade de cem, que é o máximo que uma pessoa com a minha idade hoje pode chegar. Eu mesmo, se viver mais cinquenta anos de vida, já me considerarei um sortudo, merecedor da grande sorte – ou um puta azarado, daqueles que lembram da vida e ficam rindo da própria cara.

Mas vinte e cinco anos depois do meu nascimento, eu paro para ouvir Frank Zappa, enquanto me troco para sair da minha isolação e ir para o mundo real. Percebo que o chá esfria e até já me sinto melhor (não posso negar a mim mesmo que todos estiveram presentes na minha vida. De alguma forma, de forma alguma estive realmente sozinho neste período).

Então me vem à cabeça que as coisas podem ficar melhores agora, apesar dos fantasmas do passado e da minha triste mania de ser sincero, agressivo e idiota sempre que possível.

Frank Zappa e seu cd Hot Rats. Serão “ratos quentes” ou uma gíria britânica que eu não sei como traduzir? Lembro-me que já sonhei com quem me esqueceu alguma vez no passado ouvindo essa canção... Son of Mr. Green Genes... Um dejavú novinho em folha... O tempo corre e não há muito tempo para continuar escrevendo. Lembro-me que Frank Zappa já morreu há algum tempo, assim como eu.

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quinta-feira, 17 de setembro de 2009

MEMÓRIAS DE ESPHERAS II



ISADORA E O MUNDO

Isadora, quando era criança, tinha um bola pequenina. Mas, para ela, esta bola era o mundo. Não havia um dia em que Isadora não brincasse com sua bolinha.
Claro que Isadora, com o passar do tempo, começou a ter suas obrigações. Tinha que colocar água nas plantas no quintal, comida para os cachorros, lavar a louça, varrer a casa. Sempre tinha que arrumar o mundo para que seu mundo ficasse em paz.
Claro que Isadora, com o passar do tempo, começou a se relacionar com um mundo bem maior que sua casa. Ela começou a ter uma vida social. Começou a ir pra escola, onde conheceu outras pessoas, outros mundos. Isadora teve amigos, namorados, professores admiráveis, festas memoráveis... Mas sempre que passava por pessoas e acontecimentos, Isadora voltava pra casa, entrava em seu quarto e quicava sua bolinha; ela voltava ao seu mundo sempre que o mundo lá fora estava em ordem.
E Isadora conseguiu um bom emprego, mas o perdeu. Depois, conseguiu um mau emprego, e não podia perdê-lo. Teve que pegar o mau e transformar em bom. Não foi fácil, mas ela conseguiu, e não é que o mundo ficou melhor? E não é que quicar a bolinha ficou mais fácil? Quanto mais crescia, quanto mais aprendia, Isadora percebia que sua bolinha melhor quicava quando melhor vivia a vida.
E, por fim, é óbvio, Isadora acabou por casar. E entre os altos e baixos do casamento, Isadora teve filhos, e os filhos lhe deram netos, e os netos, bisnetos, e, com o passar dos anos, a vida tirou-lhe o marido e lhe deixou o vazio.
Isadora chorou, se isolou, sumiu do mundo por um tempo. Sua bola parou de quicar... mas, o mundo... O mundo não parou de girar, as flores continuavam crescendo, e o dia e a noite sempre iam e vinham... E uma bela manhã, o sol iluminou o quarto de Isadora, já fraca, coitada, tão idosa... mas feliz. Feliz porque pensava que encontraria o amado marido em breve de alguma forma.
Nesta mesma manhã, Lisandra, sua bisneta, entrou em seu quarto. Isadora já não tinha a mesma força de antes. Tinha conseguido colocar a casa em ordem, os estudos em dia, as festas, os namoros, os empregos, o marido, ela tinha deixado tudo em ordem para poder brincar com sua bolinha. Isadora tinha sido feliz, mas não podia mais quicar a bola que tanto gostava. Isadora estendeu a bola para Lisandra e sorriu. Lisandra pegou a bola e Isadora fechou os olhos – para sempre.
Hoje, Lisandra tem uma bola pequenina. Mas para Lisandra, esta bola é o mundo. E ela sabe que, para poder ter este pequenino pedaço de mundo em ordem nas suas mãos, terá que vivenciar uma vida inteira e finita. Um pequeno quicar capaz de transformar toda uma vida. Mãos tão pequeninas fazendo parte do universo. Acreditem; não haverá dia em que Lisandra não brincará com sua bolinha.