quinta-feira, 17 de setembro de 2009

MEMÓRIAS DE ESPHERAS II



ISADORA E O MUNDO

Isadora, quando era criança, tinha um bola pequenina. Mas, para ela, esta bola era o mundo. Não havia um dia em que Isadora não brincasse com sua bolinha.
Claro que Isadora, com o passar do tempo, começou a ter suas obrigações. Tinha que colocar água nas plantas no quintal, comida para os cachorros, lavar a louça, varrer a casa. Sempre tinha que arrumar o mundo para que seu mundo ficasse em paz.
Claro que Isadora, com o passar do tempo, começou a se relacionar com um mundo bem maior que sua casa. Ela começou a ter uma vida social. Começou a ir pra escola, onde conheceu outras pessoas, outros mundos. Isadora teve amigos, namorados, professores admiráveis, festas memoráveis... Mas sempre que passava por pessoas e acontecimentos, Isadora voltava pra casa, entrava em seu quarto e quicava sua bolinha; ela voltava ao seu mundo sempre que o mundo lá fora estava em ordem.
E Isadora conseguiu um bom emprego, mas o perdeu. Depois, conseguiu um mau emprego, e não podia perdê-lo. Teve que pegar o mau e transformar em bom. Não foi fácil, mas ela conseguiu, e não é que o mundo ficou melhor? E não é que quicar a bolinha ficou mais fácil? Quanto mais crescia, quanto mais aprendia, Isadora percebia que sua bolinha melhor quicava quando melhor vivia a vida.
E, por fim, é óbvio, Isadora acabou por casar. E entre os altos e baixos do casamento, Isadora teve filhos, e os filhos lhe deram netos, e os netos, bisnetos, e, com o passar dos anos, a vida tirou-lhe o marido e lhe deixou o vazio.
Isadora chorou, se isolou, sumiu do mundo por um tempo. Sua bola parou de quicar... mas, o mundo... O mundo não parou de girar, as flores continuavam crescendo, e o dia e a noite sempre iam e vinham... E uma bela manhã, o sol iluminou o quarto de Isadora, já fraca, coitada, tão idosa... mas feliz. Feliz porque pensava que encontraria o amado marido em breve de alguma forma.
Nesta mesma manhã, Lisandra, sua bisneta, entrou em seu quarto. Isadora já não tinha a mesma força de antes. Tinha conseguido colocar a casa em ordem, os estudos em dia, as festas, os namoros, os empregos, o marido, ela tinha deixado tudo em ordem para poder brincar com sua bolinha. Isadora tinha sido feliz, mas não podia mais quicar a bola que tanto gostava. Isadora estendeu a bola para Lisandra e sorriu. Lisandra pegou a bola e Isadora fechou os olhos – para sempre.
Hoje, Lisandra tem uma bola pequenina. Mas para Lisandra, esta bola é o mundo. E ela sabe que, para poder ter este pequenino pedaço de mundo em ordem nas suas mãos, terá que vivenciar uma vida inteira e finita. Um pequeno quicar capaz de transformar toda uma vida. Mãos tão pequeninas fazendo parte do universo. Acreditem; não haverá dia em que Lisandra não brincará com sua bolinha.

2 comentários:

  1. Alguma relação com a idéia de "novo feminino" ou o fato das duas personagens serem mulheres não foi intensionado?

    PS. Obridaga pelo comentário sobre o blog... Trata-se de um elogio a ser elogiado, rs.. Nunca comentaram algo tão sério e aprofundado sobre meus textos..Nem eu eperaria, faço muito naturalmente.. Fiquei surpresa e gosto disso... Obrigada d novo!
    Abs

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  2. A evolução humana inicia na alma feminina, não tenho dúvidas sobre isto. As gerações acontecem amadurecem aparecem ali. De Isadora a Lisandra há três gerações, como Hécate, que é três e é duas ao mesmo tempo. A mulher nos coloca no mundo como mãe e nos acolhe no mundo como esposas. Essenciais.
    Sobre o comentário, foi apenas minha visão de suas palavras - ótimas por sinal, cheias dos sentidos que eu descrevi. Não é todo dia que vemos isto, não é? Beijos e esteja sempre por aqui!

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