domingo, 6 de setembro de 2009

TRILOGIA DESPEDANÇANDO FANY PARTE 3: DEUS...CANSADO DE ANDAR



1999.
Em “Deus (...) cansado de andar”, Belloto nos relata as últimas desventuras da vida de Fany a partir de depoimentos de Gianini, Gino, Michelle e do livreiro Estênio, pai de Lázaro – o noivo de Fany, na época. Esta narrativa encerra a trilogia “Despedaçando Fany”, a primeira seqüência de contos baseado na vida do homem que vaga pelas almas inusitadas dos habitantes de uma São Paulo mitológica.

TRECHO DO CONTO:
1. LESTE
A morte era a única coisa que Lázaro enxergava à sua frente. Aos vinte e três anos, não acreditava mais no amor. Há meia hora havia apontado para a face do pai a própria arma do velho. Tocado pelo remorso, chorou, cheio de angustia e arrependimento. Mas a arma pesava em sua cintura, assim como a decisão em sua mente. Parou por um instante e encostou em uma parede de tijolos. Lembrou-se da estrada de tijolos amarelos do Mágico de Oz e riu. Lamentou-se por não estar em um filme, e as lágrimas voltaram. Na infância, ouvira tanto o pai e a mãe falarem de amor, aquele sentimento tão lindo, a benção mais nobre permitida por Deus, segundo o pai. E não só falavam, como praticavam no dia a dia, com atos e gestos de compreensão mútua, sorrisos e seriedade bem dosados com distâncias e aproximações dentro do tempo exato. Não se cansavam um do outro, muito pelo contrário; saiam se tocar, estarem juntos ou separarem-se no tempo certo. Entendia de amor e liberdade, e o velho pai dizia:
“Filho, amor sem liberdade não existe.”
E ele acreditou nas palavras do pai e na felicidade da mãe. Mas a mãe feliz não havia resistido à pressão alta. Parcialmente paralisada, Estevão decidiu contratar uma enfermeira para cuidar da esposa. O salário da profissional cheia de boas referências não assustou o livreiro que, seguindo os conselhos do poeta Vinícius de Moraes, aprendeu a ganhar dinheiro com poesia.
A mãe paralítica ainda sorria, um sorriso feio e desolado, e o pai lhe sorria de volta, um sorriso lindo e iluminado. Lázaro não conseguia entender a calma, a paciência e harmonia do pai perante a mãe naquele estado moribundo e nauseante.
“Pai, por que faz isso com mamãe?” – perguntou, certa vez.
“Faço o que, filho?”
“Por que a trata desse jeito?”
O pai sorriu:
“Mas eu a trato como sempre tratei!”
“As coisas mudaram, pai! Ela vai morrer.”
“Todo mundo morre, meu filho. Eu, você, ela. Se a morte tivesse que influenciar no que eu sinto por sua mãe ou na maneira de tratá-la, isto teria acontecido muito antes de você nascer. Mas antes que eu deixe de amá-la, ela irá morrer, da mesma maneira que eu posso morrer primeiro. A morte não justifica o amor,
Lázaro.”
“Meu pai sabe amar, mesmo!”, pensou Lázaro enquanto via o amor como o bem de maior valor deste mundo em que vivemos. E, de repente, achou que o amor existia nos olhos da enfermeira que cuidava de sua mãe. E, como todo o bom filho quer manter a tradição do pai, ele iniciou seu desejo de amar a enfermeira que, com tanto carinho, cuidava de sua mãe. Os olhos da menina de vinte e nove anos começaram a brilhar realmente. Ela sabia que Lázaro estava se apaixonando, e deu motivos para que ele se apegasse mais e mais. Seu nome era Stefany – ou melhor, Fany: como era conhecida.

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