domingo, 6 de setembro de 2009

TRILOGIA DESPEDAÇANDO FANY PARTE 2: FANY:UM TIRO EM SI MESMA



1997.
Amante de um homem casado e namorada de um poeta, Fany está perdida entre o amor e as drogas. Ao mesmo tempo, Jean precisa descobrir o que Kátia deseja de sua alma, enquanto Gianini e Belloto descobrem um novo universo para suas paixões. Ocorrido dois anos após “Rendez vous revisitado”, “Fany: um tiro em si mesma” relata os acontecimentos inusitados da vida de Belloto e seus amigos, sendo esta a segunda parte da trilogia “Despedaçando Fany”.

TRECHO DO CONTO:

01. VÉSPERA

É engraçado, mas parece que as coisas sempre começam a acontecer vinte e quatro horas antes. É como se não houvesse vida antes desse tempo em nossa existência. Mas aí as coisas acontecem, e do que é que lembramos? Do dia anterior. Da véspera.
Recordo-me bem de Fany despedindo-se na catraca do metrô República com um beijo no rosto e dizendo: “Obrigada, Belloto. Eu não vou esquecer.” Nos encontramos naquele fim de tarde. Ela queria conversar comigo.
“Tem que ser hoje?” – perguntei pelo telefone.
“Amanhã pode ser tarde demais.”

O tom depressivo e melancólico me convenceu atender ao chamado. Mas, ao vê-la sorridente e alegre, entendi que tudo aquilo podia não ser tão sério assim. Fomos a uma casa de chá e conversamos por algumas horas.
“Estou amando.” – ela disse – “E ele é lindo, Bê. Gostaria que você o conhecesse. Vou apresentá-lo, assim que possível.”
“E o que ele faz?”
“Ele? É poeta.”
“E?”
“Apenas poeta. Vive de poesia. Não é o máximo? Está certo que o pai dele banca muita coisa mas, mesmo assim, ele é corajoso por ousar uma vida assim. Eu queria tanto casar com ele!...” – e suspirou apaixonada, chupando pelo canudo seu mate com guaraná. Sorri por estar vivenciando uma tarde tão linda em São Paulo ao lado de um ex-amor. O sol poente tentava suavizar o cinza chumbo dos edifícios. Trabalhadores que corriam apressados para casa misturavam-se a casais sem pressa alguma e jovens coloridos de moda, despreocupados, doidos para perder tempo na cidade. Os óculos escuros de Fany estavam sobre a mesa plástica enquanto os meus escondiam meu olhar. – “E você, Belloto? Alguém especial em mente?”

Tudo se nublou. A solidão é mais óbvia em minha vida do que minha respiração. Balancei a cabeça com um sorriso cínico e triste no rosto. Ela olhou seus óculos na mesa e tirou os meus da minha face.
“Você tem olhos bonitos. Não devia esconder. Um dia aparece alguém, você vai ver.” – sorriu e pediu mais um copo de chá.

Andamos pela cidade até que a noite caiu. Acabamos indo a um teatro alternativo perdido em algum cruzamento da Ipiranga e, depois, caminhamos até o metrô.
“Não vai pra casa, Bê?”
“De ônibus. Preciso passar na casa de um amigo.”
“Ah.”
Comprou o bilhete, voltou e abraçou-me forte:
“Você é um cara legal, Belloto.”
“Mas, e então?”
Seus olhos brilharam; ela ia tentar me enganar.
“Então, o quê?” – Era incrível! Ela devia pensar que os poucos meses que passamos juntos não foram suficientes para eu conhecê-la em certos momentos. Deu um sorriso evasivo. – “Então, o quê, Belloto?”
“Não vai me contar o que queria dizer?”
Ela abaixou a cabeça. Nos subterrâneos, um metrô partiu sentido zona Leste.
“Eu sou meio doida... Meio tonta, talvez. Às vezes eu acordo, me olho no espelho e espero ser outra pessoa. Sabe o que é isso, Belloto? Às vezes quero ter outro corpo, outra voz...”
“Mas seu corpo e sua voz são maravilhosos!” –
Ela sorriu.
“Sim. Eu sei... No fundo, eu queria mesmo era trocar a alma.”
“Não pode. Mas pode melhorar a que tem.”
“Eu sei.” – Encostou na parede e acendeu um cigarro. Fany era uma linda mulher. Os cabelos, castanhos como os olhos, desciam até a cintura. Naquela época da vida, gostava de se vestir a moda idiana; longos vestidos hippies que sempre estavam cheirando a incenso barato. Os seios pequenos já não tinham mais a rigidez da adolescência, mas ainda eram belos. O cigarro era herança de um período desregrado, regado a drogas e estimulantes em festas dançantes, das quais ela saiu ilesa, vendo amigos sucumbirem a overdoses.
“Eu sei um monte de besteiras.” – Disse ela por fim, assim que o cigarro acabou – “Eu vou embora. Ambos temos compromisso esta noite. Obrigada, Belloto. Eu não vou esquecer.”
Sorriu, beijou-me na face e sumiu do meu olhar na escada rolante, que a fez evaporar em meio à pressa da multidão.

Um comentário:

  1. Li seu conto, "Fany, um tiro em si mesma"
    Adorei, a leitura prende mesmo!
    Gostei mto disso aqui: "A lua está linda hj. Linda e perigosa. Sabia que a lua cheia...segundo reza a lenda, inimiga da criação divina" (toda essa parte por completo)

    "...um silêncio recheado com palavras certeiras..."

    "O passado é algo mágico"

    "Introduzi meus dedos em seus cabelos. Ela sorria e suspirava, como se eu...até que ela perguntou se eu qria ouvir uma canção" (toda essa parte por completo)

    Parabéns mesmo Claudema! Manda mto bem!

    Beijos.

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