domingo, 6 de setembro de 2009

SOBRE NEYSON BELLOTO


Conheci Belloto em meados de 1993. Nesta época, eu tinha quase dezoito anos e já conhecia as drogas, o sexo, o rock, o blues, a mpb, o cinema, literatura, filosofia, psicologia e jornais sensacionalistas. Éramos todos jovens numa cidade como São Paulo, longe dos olhos dos pais e próximos da vigilância hipócrita de uma sociedade tetraplégica: éramos capazes de tudo. “Foda-se o sistema” era o nosso lema. E, quanto mais fodíamos o sistema, mais a gente se fodia. Foi difícil aprender o jogo da vida e, antes que isto acontecesse, muitos amigos entre quinze e trinta anos pereceram entre drogas, assassinatos, doenças mortais e suicídios. Belloto havia chegado de Espheras em 1989, e acabou parando em São Miguel. Nossas turmas não se cruzavam, mas tinham atitudes semelhantes perante a vida – e a morte. Aliás, nos conhecemos, de fato, no enterro de uma amiga em comum, que havia tirado a própria vida depois de assistir o casamento de sua grande paixão, em 1993.
Nos víamos com freqüência na Biblioteca Municipal Raimundo de Menezes, de lá, a conversa se mudava para as padarias de quinta categoria ou para um boteco qualquer. Pés rapados bebendo a pinga mais barata e fumando cigarros do Paraguai.
De súbito, Belloto recebeu a herança de uma tia rica. Foi a Espheras com dinheiro emprestado e voltou bem de vida. Montou o antiquário e começou a ter uma liberdade de tempo bem maior que todos nós, que nos tornamos ajudantes gerais em metalúrgicas ou office boys no centro de São Paulo. Alguns foram para a universidade e outros para a penitenciária – ou para a polícia. Nada mais seria possível num bairro localizado no extremo leste de São Paulo para os descendentes de nordestinos que tornaram a Nitro Operária a empresa que foi. As bandas não gravaram, os livros não foram publicados, os amores não deram certo e os sexos inconseqüentes – os que tiveram a sorte de não contrair HIV – se transformaram em casamentos mal sucedidos, salvo raras exceções.
Não havia esperança de uma vida extraordinária para pessoas ordinárias. Mas Belloto provou que toda a vida é ordinária; o que faz a vida extraordinária é a maneira que vivemos, e São Miguel se tornou nossa Grécia Antiga, nosso mundo mitológico.
Conversei muito com Belloto e gravei estas conversas, passando tudo para diários utilizando caneta e cadernos pequenos de capa dura, registrando nossos heróis. Sempre quis mostrar aos meus filhos estas histórias. Mas uma namorada certa vez leu um desses cadernos e apaixonou-se pela narrativa inusitada. Disse que aquilo devia ser dividido com o mundo – era muito egoísmo guardar para uma ou duas pessoas. Tentei convencer Belloto por um tempo, mas ele não permitiu a divulgação de suas histórias.
No ano passado, Belloto quase morreu ao receber um tiro no peito. Após o incidente ser superado, ele permitiu a publicação de seus relatos. Perguntei o motivo da liberação, e ele disse apenas que já estava morto. (De fato, após o incidente, ele nunca mais foi o mesmo. Quando alguém que você ama dispara um trinta e oito em seu coração, você morre, mesmo continuando vivo).
Uma vez permitido, entrego a vocês vidas em forma de contos. E, como disse Mário de Andrade, se nossa vida não servir de exemplo, ao menos servirá como lição. E, no final das contas, todos nós, daquela época até hoje, queríamos apenas o que Gianini deseja: existir. Todos os dias eu rezo a Deus para que isto esteja acontecendo.

São Paulo, 23 de Outubro de 2007.

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